Como foi que te vi pela primeira vez:
Achámo-nos os dois, fortuitamente, a bordo
De um vapor que arvorava o pavilhão inglez.
Quando galgaste a escada, eu estava postado
Ao porta-ló e tu não me notaste ali.
E nem viste siquer que fiquei transformado
Ao estranho fulgor que provinha de ti.
Buscaste o camarim para mais tarde, quando
Cortava o manso mar a quilha do vapor,
Surgires, como um sol, entre moças, num bando,
A’s quaes maravilhava o teu grande esplendor.
Era azul como o céo e calmo como o lago
O mar, olhando alem divisam-se ilhotas;
E em roda do vapor, doce como um affago,
Sentia-se o ruflar das azas das gaivotas.
Demandavas Paris e eu tambem demandava
A bella capital da terra de Zolá,
A cujo resplendor eu já tinha a alma escrava,
Embora não tivesse ainda vivido lá.
Mais de cem nós talvez o vapor caminhara
Quando o sol se escondeu, e da noite o amplo manto
Veio privar-me a mim de extasiar-me á rara
Graça do teu perfil que me fôra um encanto.
O pensamento em ti, de bruços na amurada,
Fiquei olhando o mar, como o albatroz tristonho,
Emquanto que a dormir e de mim alheiada
Gosavas certamente as delicias do sonho.
No outro dia, porem, quando eu cerrava os olhos,
Porque passara em claro a noite anterior,
Talvez para sonhar com procellas e escolhos,
Ao ouvido chegou-me o teu riso de flor.
E, como quem se attrae á irradiação da estrella,
O beliche deixei e fui ter ao convés,
Numa ansia de te ver, maravilhado pela
Fascinação, emfim, dos teus olhos crueis.
Então trocámos nós um olhar receioso
A principio; depois outro olhar permutamos,
E no peito senti o coração, ditoso,
Cantar toda a canção dos passaros nos ramos.
Em seguida sorri e tambem um sorriso
A bocca te enflorou de rubido coral.
E se me descerrou dess’arte, de improviso,
O solar em que habita a ventura terreal.
Emboras, horas após, falavamos da viagem
Emquanto de revés te mirava a mamã,
E de cá para lá a activa marinhagem
Baldeava o navio a papaguear louçã.
O meu amor por ti foi então comprehendido.
Amàmo-nos os dois; diariamente, enfim,
Eu sentia um prazer por mim jamais sentido
Ao ver-te, como um sol, radiante ao pé de mim.
Uma tarde, porem, á hora da agonia,
O mar se encapellou; de subito cresceu...
Choravas de pavor, emquanto eu bemdizia
A sorte de morrer feliz ao lado teu.
O temporal possou e, no dia immediato,
Ditosos, eu e tu, nem viamos o mar
Que me não assustara e que te fôra ingrato,
Porque não te poupara um immenso pezar.
Alfim, chegámos nós a Bordeaux. Neste porto,
Em meio á confusão, nos dissemos adeus.
Quando alcancei Paris estava quasi morto
De saudades de ti e desses olhos teus.
Na cidade da luz, um “apache” maldito,
Por me a vida poupar, exigio-me a carteira.
Dei-lh’a, sem me lembrar do cartão em que escripto
Havia a tua “adresse”... e perdi tua esteira!
De sorte que jamais, a despeito do esforço,
Consegui te encontrar naquella capital,
Por tudo te busquei, não me escapou um corso,
Não me escapou tambem um qualquer festival...
Desanimei então de vir a por os olhos
Outra vez sobre ti e, no regresso, quiz
Que o vapor se partisse, a bater nos escolhos,
Porque a morte tão só me faria feliz.
Meu desejo foi vão... Nunca o mar se mostrara
Tão manso e tão azul como o cèo, nem jamais
Houvera capitão que, com pericia rara,
Afastasse uma nau dos bancos de coraes.
São e salvo cheguei, trazendo-te á lembrança...
Muito tempo vivi sem lograr te esquecer;
Mas perdendo afinal a final esperança,
O morto coração resurgio-me ao prazer.
Já estava, pois, de ti esquecido de todo,
Quando o acaso me poz sob a vista um jornal
Editado em Paris, e eu quasi fiquei doudo
Ao ver que eras mulher de “monsieur” de Pascal.
Tive ansias de morrer novamente; tão fundo
Abalo foi o meu, que nem sei a razão
Porque não disse adeus eternamente ao mundo,
Retalhando a punhal meu proprio coração
Não me poupou o Fado esta nova tortura;
Soffri a maior dor que alguem sentir pudera;
Entretanto, ao meu mal, o tempo deu-lhe cura
E outro amor me levou á ilha de Cythera.
Ao me leres, talvez te recordes da viagem
Que fizemos os dois, casualmente, a Paris.
Perdão... Eu viajei só... Ventura é uma miragem,
Alcançal-a é sonhar, sonhar é ser feliz!
Arco iris (1923)
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