O Jornal - Segundo Acto


CORONEL – Upa, nho moço. (Enxugando a testa) Suei! As veis a gente tem uns desaranjo que fais alembrá as tempestade que assucede de onde em onde sem que se escuite as roncaria dos trevão! E se a gente não é ligero pra fugi das aguada se moia que é aquella certeza! Eu tava facilitando pro mode pensá que era trevoada secca, mais quar o quê! Foi um temporá medonho! Os negoço tava fervilhando, de maneiras que se o fio do meu pae não é bão de perna si atolava inté a nuca, proque inda ansim não pude se escapá duns respingo. Puxa barburidade! Eu inté se arrecordei da urtima tempestade que desandou no rincão. A principe foi aquella ventania de derrubá arves, despois o baruio dos trevão, faisca enletra, raio, relampo, corisque e, pro fim, uma bruta chuvarada de pedra! E já não é a primeira veis que me assucede isto. De uma feita, cando eu tava pra casá com a Geltrude, sartei a ginella e dei uns carrerão pros mato, que inté fizeram supposição que eu tinha ficado doido do juiso. Na vorta, a Geltrude me oiou sarapantada e intonces inquirio pro que eu havera mudado de cô. Eu fiquei vexado de contá pra ella e me discurpei dizendo que tinha visto passá uma jaguatirica pros lado da casa do cumpadre Chicuta e corri pra acudi a muié delle cum medo que ella não pudesse escapá do bicho. E pra mais parecê verdade a minha mentira eu contei tãobem que tinha dado um tiro na onça. Intonces a Geltrude me ajudou a sahi do embruio, afiançando que não tinha ouvido o baruio da descarga, mais porem tinha sentido o cheiro da porva queimada. Mais tarde, despois que nois se casemo, eu contei toda a istora á muié, que quage se dismanchou-se de dá gargaiada!
CONTÍNUO – Sim, senhor! O coronel teve um expediente que talvez me escapasse em idênticas condições! Eu confesso que, se o caso se passasse comigo, a jaguatirica não só comia a mulher como toda a família do seu compadre.
CORONEL – É pra Vancê vê que as veis um cabocro do mato e burro como eu, fais coisa que deixam de bocca escancarada os home de inlustração.
CONTÍNUO – Mas, o coronel é um homem intelligente, tanto assim que se sahio como um principe...
CORONEL – Quar o que, nho moço. Isso é modesta de Vancê.
CONTÍNUO – Dê-me, coronel, mais uma prova de sua intelligencia. Cante os versos promettidos.
CORONEL – Ora, nho moço, eu não sei nada que possa agradá.
CONTÍNUO – Lembre-se, meu amigo, que promessa é a unica divida que se paga sem dinheiro.
CORONEL – Intonces, qué mesmo?
CONTÍNUO – Que duvida... Posso lá eu prescindir de semelhante prazer.
CORONEL – (á parte) O moço fala custoso que nem o dotô juiz do rincão!
CONTÍNUO – (Dando-lhe a viola) Ponho-lhe na mão o instrumento do gallego.
CORONEL – Já que Vancê qué tanto, eu vou lhe satisfazê. Mais oie que não vá ficá tarde pra vê o restante do orgui do moço? Vancê arrepare que elle é um bruto...
CONTÍNUO – Qual tarde. Não se incommode. Cante, que temos muito tempo.
CORONEL – (Pontilhando a viola) Escuite, nho moço, que lá vae obra:

Geltrude, muié querida,
Amada do coração
Meu amô é uma ferida
Que tem fogo de tição.

Que gostoso a vida inteira
Eu passá junto de ti,
Como passam, nas touceira,
Os casar de coati.

Ai! Geltrude do meu peito,
Minha futura muié,
Eu só fico satisfeito
Cando tou de ti ao pé.

Tomara que chegue o dia
De matá os meus desejos...
Eu quero tê a alegria
De te enfeitá cos meus beijos.

E despois a vida inteira
Passá juntinho de ti,
Como passam, nas touceira,
Os casar de coati.

CONTÍNUO – Muito bem! Muito bem! O coronel é admiravel cantando! Tivesse eu esse dom e mandaria a redacção ás urtigas.
CORONEL – Vancê sempre bondoso, nho moço. Si Vancê quizesse cantá umas cantigas, eu havera de ficá bastante sastifeito. Vão vendo que Vancê canta mió que o azulão nos mattagá.
CONTÍNUO – Um pouquinho eu também canto. Confesso, porem, que não sei pontilhar a viola.
CORONEL – Ora, nho moço... Apois isso não é nada. Vancê cante, que eu arrepinico o instrumento do gallego.
CONTÍNUO – Far-lhe-ei a vontade. Vou cantar umas quadrinhas da minha lavra. Fil-as, em tempos idos... (á parte) com a mão alheia! (ao Coronel) Posso começar?
CORONEL – Cando Vancê quizé.
CONTÍNUO – (Depois de ter tossido, procurando arrancar um pigarro que não existe)

Não conhecia a saudade,
Vim conhecel-a depois
Qua a mão da fatalidade
Nos separou a nós dois.

Partiste... Fiquei sosinho...
E, nesta desolação,
Deve ser saudade o espinho
Que me punge o coração.

CORONEL – Sim, sinhô! Vancê canta mió que a tigitica! Eu inté lhe digo que si soubesse que Vancê era ansim cantadô, já tinha enfiado a viola no saco do gallego dono della! Bamo, nho moço, vê o restante do jorná, proque eu tenho aindas que conversá cuma dona, que me piscô os oio cando eu passei junto da casa della, antes de vi tê aqui. Parece inté que a bicha é taliana, proque me disse ansim: Que véio simpaco”.
CONTÍNUO – Com que então o coronel...
CORONEL – Vancê sabe que o amô é um piá que bole inté cos véio. A minha defunta avó, que era muié disgranhida pra amá, dizia que elle era cego, por isso que não enxergava cabello branco na cabeça de gente.
CONTÍNUO – Acredito na cegueira do amor antigo, porque naquelle tempo não existia a Optica Americana. Hoje, porem, elle enxerga mais do que o fabuloso Argos de cem olhos.
CORONEL – Bamo, ligero, nho moço, que inté por via da taliana eu nem jantei aindas e Vancê demorando ansim eu sô capais de perdê a sopa...
CONTÍNUO – Está bem. Continuemos... Vae o coronel apreciar uma das mais engraçadas secções do jornal: a reportagem. Ás vezes, os seus redactores contam-nos casos interessantes, em longas tiradas de romance, dando-lhes epigraphes tão suggestivas, que valem por um optimo apperitivo. Muita attenção, coronel:

Mimi tinha um namorado
Que, depois que a seduzio,
Com promessas de noivado,
Um bello dia fugio.

A moça, que era louçã,
Entristeceu depois disso,
Suppondo a sua mamã
Fôra cousa de feitiço.

Mimi, porem, não podendo
Esconder o seu estado,
Contou á mamã, tremendo,
O abuso do namorado.

Levando a filha comsigo,
A mamã, dona Mauricia,
Após conselho de amigo,
Deu sua queixa á policia.

Fez-se inquerito... No dia
Em que se ia ouvir Mimi,
O namorado, o Faria,
Risonho apparece ali.

Teve a menina um desmaio,
E a velha, toda rancor,
Esbravejou, como raio,
Contra o moço seductor.

Sem perturbar-se, no emtanto,
O Faria diz assim:
Meu Deus! Meu Deus! Porque tanto
Escarcéo? Ouvi-me a mim:...

Arrependido de haver
Fugido da capital,
Sentirei grande prazer
Em reparar o meu “mal”.

Desfez-se em riso a menina...
Mudando da voz o accento,
A velha diz, mui ladina,
Vamos, pois, ao casamento.

Em seguida a autoridade,
Piscando um olho á Mauricia,
Murmura com gravidade,
“Cessou a acção da policia”.

Mãe e filha e namorado,
Sahiram todos de vez...
— Queira Deus o delegado
Não se amole mais com os tres!

CONTÍNUO – É ou não é o que lhe disse, meu coronel? Essa historia bem podia ser contada em tres tempos, mas o mocinho cavador de furos entendeu de dar-lhe melhores tintas, servindo-se da brocha da intelligencia.
CORONEL – É que elle tem tempo, nho moço. Eu, por exempio, não percurava rodeio pra contá o que o namorado tinha feito. Punha tudo nos jorná, sem disperdicio de muita frasia. Fazia tudo ligeiro, como a Geltrude cando conta um assucedido, proque ella é muié que não gosta de coisa cumprida.
CONTÍNUO – Comprehendo... Ella, a sua senhora, abrevia...
CORONEL – Que Vancê disse, nho moço? Abrevia, vai elle.
CONTÍNUO – Abreviar, coronel, quer dizer encurtar... Logo, com uma palavra, eu disse tudo, isto é, que a sua esposa gosta de historia curta.
CORONEL – Acceito a sua expricação e peço a Vancê me discurpá o mar intendido.
CONTÍNUO – Outra nota de reportagem, sr. Anacleto.

O coronel Bento,
Morador no Timbó,
Mal cessou o movimento
Do trem, desembarcou e só.
Na estação,
Era uma alluvião
De gente...
— Olha o carrinho... Doces... Bala...
Pensão Alegre... Hotel Ideal...
Quer que leve a mala?
De repente,
O coronel leva, de frente,
Um encontrão...
— Fiz mal
Sem o querer... Cavalheiro,
Perdão...
— Está perdoado... Isto dá-se...
E um riso presenteiro
Illuminou a face
Do coronel
Que, incauto,
Tomando um auto,
Rumou ao Grande Hotel...
Horas mais tarde,
O coronel sente falta da carteira,
E faz um tal alarde
Que põe em reboliço a casa inteira.
Bem... Vamos dar parte
Á policia... Eu penso que o senhor
Foi victima da arte
De um habil batedor...
Vou agir, diz o chefe. Tomei nota...
Hoje... amanhã... depois talvez...
Ó coronel, pobre idiota,
Ficaste sem carteira... Era uma vez!...

CORONEL – Puxa cabocro besta, nho moço! Apois esse caipira do matto não vio logo que um encontrão ansim qué dizê carteira fóra do borço?! Commigo não vae disso. Esbarrou eu arranco a garrucha da cintura e grito com toda força do purmão: Dá cá a carteira, sinão vancê vira defunto! Tarvez vancê não acredite, mais porem é certo. Honte, dois home se achegaram de mim e eu já tava no geito de pregá fogo nelles, cando um me disse: “Vancê não se arreceie de nois, cavaeiro. Nois queremo lhe propô um negoço de seriedade. Intonces, eu sortei o gatio das arma, proque apercebi que tava lidando com gente boa. E pra lhe dizê as verdade, nois fizemo um negoço tão bão que só gente séria pode fazê. Os home tava apurado pro uns dinhero miudo, pra pagá o chufê dos automove. Intonces eu dei pra elles os cobre, mais porem elles me deixaram nas mão, como penhô inté amanhã, um bruto imbruio, que aindas tá fechado nos hoté, cheio de pellegada de cem mir rés.
CONTÍNUO – (á parte) O coronel foi no embrulho! É mais uma victima do conto do vigario. Eu, porem, nada lhe digo, porque não quero perder a opportunidade de mordel-o. (ao coronel) Bem se vê que o coronel Anacleto da Rosa não é pra ahi qualquer papalvo, que se deixe lesar como esse outro official de igual patente...
CORONEL – Justamentes. Vancê pode ficá certo que eu não tenho inlustração, mais porem não é quarquer que me passa a perna. Quem nasce no Papanduva não se deixa engasopá como cabocro do Timbó, cuja bobicia inté arrevorta a gente. Eu inté nem sei proque o governo dá galão de coroné aos home daquella redondeza!
CONTÍNUO – Tem razão, meu carissimo Anacleto. O desprestigio da Briosa vem do facto de se transformar em caixão de defunto de primeira classe individuos que malmente poderiam ser praças de pret. Deixemos, porem, a Guarda Nacional a um canto e vamos ver o resto do jornal. Chegamos á secção do jury. Eil-a:

Sob a presidencia,
Do doutor Sapiencia,
Hontem funccionou o tribunal...
Fez a accusação,
Que foi magistral,
O dr. Serapião.
Entrou em julgamento
O réo Antonio Bento,
Accusado
De haver deflorado
Uma irmã, morto os paes, ferido um tio,
Que não morreu, já se vê,
Unicamente porque
Fugio...
O escrivão Felisbino
Leu o libello,
Segundo o qual o assassino,
Armado de um cutello,
Pondo a nú a sujeira de sua alma,
O crime praticou e, preso, então,
Narrou-o com tal calma
Que causou indignação.
A defesa, porem,
Sem fazer escarcéo,
Provou, e muito bem,
A innocencia do réo.
Antonio Bento, disse, é uma alma pura,
Senhores juizes de facto...
Será, pois, uma loucura
Julgal-o autor de semelhante acto.
Outro matou... ferio... e ao meu cliente
Se atira a culpa, entretanto
Condemnar o innocente
É sujar da justiça o claro manto.
Findo o discurso do defensor,
Um meio bacharel,
Que se inculca doutor,
E não dispensa o annel,
O conselho de sentença
Ao quarto recolheu-se e, sem detença,
Os quisitos negou, em liberdade,
Por unanimidade,
Pondo o réo,
Cujo remorso berra:
Escapei á justiça da terra,
Mas não fugirei á do céo!

Foi recusado
Apenas um jurado:
O peixeiro hespanhol
D. Fuas Caracol.

CONTÍNUO – Resultado previsto: a absolvição de Antonio Bento. Dentre as cousas mais avacalhadas em nosso paiz, resalta a instituição do jury. O individuo, hoje em dia, mata, esfola e rouba, contando de antemão com a impunidade. Ha sempre uma tangente pela qual escapam ao merecido castigo da reclusão o bandido mais infame, o ladrão mais desbriado, o seductor mais miseravel. Aqui, ali e acolá absolvem-se réos confessos, porque a politica quer; cabalam-se jurados e habilmente se afastam do conselho de sentença os homens que fecham ouvidos a rôgos, porque não costumam mentir á consciencia. Não acha, coronel, que um faccinora como esse devera ser condemnado?
CORONEL – De certo, home de Deus. Adonde se vio sortá um home tão brabo que inté teve corage de matá a mãe delle! Ha de andá quage perto de dois anno que, lá no rincão, nois condemnemo um sujeito que matô um boi. O dotô que defendia elle feis umas discursarada cumprida, cheia de palavrada escoida nos diçonaro. Falô na muié delle matadô, nos piá que elle tinha, fazendo inté a gente chorá sem querê, tudo pro mode vê se podia arranjá que o réo tivesse sortura. Cando se acabou-se a discursarada nois entremo pro quarto pra arrespondê as progunta do dotô juiz. O Mané Tiburce, que foi com nois, proque tãobem era jurado, queria dizê que o home tava insemto de curpa, pro mode vê si elle se escapava das grade, mais porem eu se atravanquei nos meio e portestei contra as affirmação. Nois percisava desafrontá a justicia. Intonces tudo me acompanharo, inté o Tiburce, e nois condemnemo o matadô de gado a sê preso na cadeia inté o dia de sê sorto.
CONTÍNUO – (á parte) Bella sentença coronelesca! (ao coronel) Perfeitamente. Procedessem sempre assim os jurados e eu lhe garanto que o numero de crimes diminuiria.
CORONEL – E vancê qué sabê de uma coisa? Nois condemnemo o home proque semo de opinião que quem mata animar tãobem é capais de suicidá gente! Vancê não pensa ansim?
CONTÍNUO – Dou-lhe toda a razão, meu amigo. Mas... Diga-me: Que fazia o assassino lá no rincão? Certamente era algum vagabundo, sem residencia fixa, como as andorinhas?
CORONEL – Ele trabaiava de carniceiro. Vendia carne pra nois comê.
CONTÍNUO – Neste caso, o coronel foi injusto, condemnando-o. Como elle havia de vender carne sem matar o boi?
CORONEL – É que vancê não sabe que elle matou um boi de estimação, que era do cumpadre Fagunde, e nois condemnemo elle pro sê ladrão de animar dos outro.

Faz annos hoje a senhorita
Lili Maria de Mesquita,
A quem, por isso, jubilosos,
Mil parabens levamos nós,
Pedindo a Deus que lhe dê gosos
E meia dúzia de coiós.

CONTÍNUO – Noticias de anniversario, coronel. Aqui, nesta secção, tem sahido cousas assombrosas. Não raro vê-se o registro do natalicio de pessoas que, ha muito tempo, pertencem ao outro mundo.
CORONEL – Intonces, tãobem se bota nos jorná o annos dos defunto?
CONTÍNUO – É para ver, meu amigo, que é sui generis o criterio adoptado pelo redactor desta secção.
CORONEL – Nho moço, vancê me perdôe, mais porem me exprique mió, proque isso de metê ingrez nos meio das falação me deixa aconfundido das intelligença. A gente que só estudô nas escola do matto não póde intendê essas linguarada das terra da estranja.
CONTÍNUO – Far-me-ei comprehender melhor. Eu quero dizer que os redactores desta secção, no intuito de serem agradaveis, recorrem aos jornaes dos annos anteriores e registram anniversarios de senhoritas já casadas, de senhoras casadas já viuvas, de pessoas mortas, etc.
CORONEL – Agora tô comprendendo, nho moço. Vancê qué dizê que os moço fais questão de pô o annos da gente no orgui, sem simportá si os dono delle casô, ficô viuvo ou esticô as canella e foi pra sociedade dos pé junto.
CONTÍNUO – Perfeitamente. Estou satisfeito por ver que me fiz entender como queria. Olhe, eu não lhe posso garantir, porem me parece que essa senhorita Lili já é mãe de uns tres filhos. Se não me engano, este mesmo jornal, ha cousa de quatro annos, noticiou o casamento della, tecendo rasgados elogios ao noivo que, por signal, era um individuo desclassificado. Naturalmente, a noticia do enlace nupcial foi feita por algum amigo dos nubentes. A redacção recebeu-a e, como de costume, sem indagar da procedencia, fel-a publicar. Houve commentarios á rata dos jornalistas, que receberam cartas anonymas com a biographia do noivo, que era um refinadissimo tratante.
CORONEL – Que horrô! Vancê sabe o que é mió? Eu vô falá com moço redatô e pidi as minha cobrera, proque si é ansim não presta o orgui delle.
CONTÍNUO – (á parte) Bem dizem que o muito falar prejudica! (ao coronel) Não faça tal, sr. Anacleto. Confesso-lhe que fui um tanto exaggerado, ao referir-me á secção de anniversarios. É verdade que os redactores ás vezes cochilam, mas commumente ali só figuram nomes de pessoas altas.
CORONEL – Intonces, fica o dito pro não dito. Mais porem vancê ponha no jorná o annos da Geltrude, que só não é arta cando se abaixa pra fazê quarquer necessidade.
CONTÍNUO – Far-lhe-ei o desejo. Vamos ver, coronel, as noticias dos que se casam nesta quadra de aperturas.

Foi uma festa de arromba
O enlace Lima-Pereira.
Bebeu-se cerveja Pomba
E cerveja Brasileira.

Houve discursos... Falou-se
No amor, no noivado, emfim
No casorio, que é tão doce
Como se fôra um pudim.

Um convite disse: “O amor
É como a aza que voa,
Tem o perfume da flor,
É da vida a cousa boa!

Quem ama sabe o que é goso
E quem não ama vegeta...
Que Cupido, o deus mimoso,
Crave em nós a sua setta.

Quem morre solteiro passa
Pela vida sem viver...
O casamento é uma taça
Com champagne do prazer!

Bebendo pela ventura
Deste par, neste momento,
Espero não haja usura
Em favor do povoamento!”

CONTÍNUO – Noto que o coronel está radiante de alegria. Sou capaz de apostar que o discurso que o amigo acabou de ouvir proporcionou-lhe extraordinario prazer.
CORONEL – Pra lhe falá com franqueza, eu digo a Vancê que fazia uma temporada que eu não escuitava umas falação ansim desse geito. Ota home bão pra discursá! Si eu sabesse dizê tantas belleza de frasia, deixava os pago e ia corrê mundo só pra orá nos casorio. A gente cando escuita uns oradô ansim é que sente pezá de não tê podido curtivá nos matto a fror das intelligença.
CONTÍNUO – Ainda está em tempo, coronel. Transfira a sua residencia para um centro culto, dedique-se ao estudo e verá então que a força de vontade supera todas as difficuldades. Quem dirá que ainda não hei-de vel-o occupar uma cadeira na Camara dos Deputados ao lado de Mauricio de Lacerda? Quem dirá que o coronel não vá ainda para a Academia de Letras, sentar-se junto de Ruy Barbosa? Outros que lá estão poucos conhecimentos têm mais do que o coronel. Tornaram-se immortaes á custa de empenhos e fizeram-se representantes do povo por meio de actas eleitoraes falsificadas. Estude, meu amigo, porque, já o dissse alguem, “nunca é tarde para se aprender”.
CORONEL – Não brinque, nho moço. Vancê bem sabe que não ai sabedoria que entre nas cabeça de burro canto mais na minha. A burricia é tar quar as doenças que os dotô chamam cornicas. Despois que ella se agarra na gente não ai mesinha que faça ella sai. Todo trabaio pra gente sinlustrá é o mesmo que tomá remmedio de barde.
CONTÍNUO – Nem tanto, sr. Anacleto. Ouça o meu conselho. Venha residir aqui, frequente boas rodas, procure mestres capazes, deixe correr o tempo e depois me diga que fim levou o coronel Anacleto do Papanduva.
CORONEL – Oie, nho moço. Primeiramentes eu vorto aos pago pra vê a muié e as minhas cinco famia. Despois que matá a sodade do amô junto da véia, tarvez te escreva acerca da nossa conversa.
CONTÍNUO – Está muito bem... está muito bem... (á parte) Como é triste a ignorancia, sentenciava o Pacheco do Eça de Queiroz. E ainda ha paes que guardam dinheiro com sacrificio da educação dos filhos, quando o maior dote que se pode legar á prole é a illustração. (ao coronel) Em que pensa?
CORONEL – Tava vendo se podia me arrecordá dos discurso que o moço feis nos casorio. Nho moço, oie que eu não posso se isquecê da taliana.
CONTÍNUO – Registros de nascimentos... Isto aqui não vale nada. Vamos ver o obituario, saltando os nascimentos? Que nos importam os bebés?!
CORONEL – NHOR não. Eu gosto de vê tudo tar quar tá pubricado.
CONTÍNUO – Desculpe-me. Eu pensei que o coronel não gostava de creanças. Vejamos, pois, quem veio cumprir o seu fadario neste valle de lagrimas.

NHÉ... nhé... nhé... Nhé...
Em festa o lar
Que outro bébé
Veio enflorar.

Parabens ao Souza
Mais á sua esposa.

CORONEL – Que sodade do meu urtimo piasinho que ficô no rincão! A esta hora elle ha de tá chupando a muié que nem um bezerro! Vancê conhece o tar de Souza? Eu queria i lá pra vê o bébé e matá as arrecordação do meu fio.
CONTÍNUO – Conheço-o. É um homem pauperrimo, a quem a nossa visita só causará incommodo. Isso do jornal dizer que o seu lar está em festa pode-se traduzir por uma ironia, pois eu acredito que o infeliz vae lutar com difficuldades para conseguir pagar a parteira. O pobre, quando lhe nasce um filho, sente apenas a alegria de ser pae. Esse prazer, porem, é fugace. Passa, como um relampago, á lembrança de que os recursos lhe são escassos...
Cousas tristes, coronel. Chegamos ao obituario:
CORONEL – Ai, meu Deus! Quem será o defunto?!
CONTÍNUO – Vae saber...

Hontem deu-se o passamento
De Dona Rita Avellar,
Mulher de grande talento
E de virtudes sem par.

Essa morte foi sentida
Por toda população,
Pois Dona Rita era tida
Como um santo coração.

Ao seu marido, que chora
Esse tremendo desar,
Apresentamos agora
Nossos votos de pezar.

CONTÍNUO – (Ao coronel, que abre empranto, como se perdesse um ente mui querido)
Que tem, meu carissimo Anacleto? Porque tantas lagrimas? Sente alguma dor? Diga-me, coronel... Diga-me a causa desse pranto?
CORONEL – É que eu não posso vê defunto sem chorar, nho moço. Eu sou muito sensirve de coração e não aguento as larmas quando vejo um vivente morto.
CONTÍNUO – Ora, meu amigo, a piedade não vae ao extremo de se viver derramando lagrimas por todos que morrem. Se fosse assim, nunca teriamos um momento de riso. A vida, já de si pesada, ser-nos-ia intoleravel mar de lagrimas. Demais, o coronel não vio defunto aqui. (á parte) Se fosse mais cedo talvez visse um maldicto cadaver que me anda a perseguir vae para 2 mezes, porque lhe não pude pagar ainda uma continha de dez mil reis. (ao coronel) Sim... o coronel escutou apenas a noticia de um fallecimento.
CORONEL – Intonces, nho moço, isso não abasta pra eu desabafá o sentimento? Eu não conheci a d. Rita, mais porem como não havera de chorá a morte da fallecida, si o jorná diz que ella era muié de coração bondoso e virtuosa? Que dó eu tenho dos marido della e mais dos piá orfe que ella deixou no mundo! Uma dona ansim nem devera morrê. Eu se fosse deus só matava gente ruim, pro mode alimpá as terra.
CONTÍNUO – Deixe-se de sentimentalismo, sr. Anacleto. Pois o sr. não percebeu ainda que essa D. Rita Avellar, como tantas outras que têm morrido, viveu talvez até hontem a braços com a misseria, na maior obscuridade? Ninguem lhe conheceu o talento e as virtudes, inclusive a bondade, senão depois que a morte a levou á cova de sete palmos. É assim, meu amigo... Depois que se morre os predicados apparecem. Os jornaes registram-n’os, destacam-n’os, lamentando hyppocritamente a perda de seus donos. Na noticia da partida, ainda estamos para ver citados os defeitos das pessoas que viajam para o outro mundo. Os mortos sempre foram virtuosos, tiveram talento, praticaram boas obras. Aos vivos nega-se muita vez o que de facto lhes pertence e dá-se aos mortos aquillo que elles nunca possuiram. É que a hyppocrisia ajoelha-se ante o tumulo que se abre e a inveja não perde vasa para retalhar os corações humanos! Concorda commigo, coronel?
CORONEL – Arrefretindo nas suas consideração, a mode que a minha conciença tá dizendo que a razão acompanha a Vancê. Tou vendo que toda essa coisarada de falá bem dos vivos que morreram é fingimento. Agora Vancê pode ficá certo que o Anacreto não gasta mais larmas por aeia gente que fallecê. Quando morrê um defunto nos pago, ninguem ha de me vê chorá pro elle, proque eu não sou bobo de carpi a desgracia dos outros. E se arguem me proguntá proque eu se modifiquei despois que vim á capitar, eu arrespondo que foi Vancê, nho Gregorio, que me abrio o oio aqui, fazendo vê a minha bobicia de chorá pro quarquer fallecido. Pro mim pouco importa que morra os meu semelhante do rincão, inté mesmo o boi carrero do Bento Formiga, que eu não hei de derramá uma só larma de dô. Vancê me disse, e eu acredito, que ai tanto fingimento no mundo, que inté se fais burrada em lamentá pro sê sincero os desconhecido que não escapa da maleita mortá.
CONTÍNUO – É isso, meu coronel. Bastam os nossos infortunios, que não são poucos. Cada qual que chore a sua desdita. Porque se juntar á nossa a dor alheia? Uns se lastimam, outros se divertem, eis o que é o mundo, sentenciava em tempos idos o respeitavel Conselheiro Acacio. Vamos, pois, nos divertir agora com as notas policiaes, que quasi sempre são magnificas.

Acudio a visinhança
Aos pedidos de soccorro...
Dizia o marido; “amansa...”
Bradava a mulher: “cachorro...”

Era uma scena de ciume:
O Chico, um conquistador,
Dera um vidro de perfume
Á cosinheira Leonor.

A mulher, que era uma brasa
E que fizera o alarido,
Ao ver tanta gente em casa,
Avançou para o marido...

Interveio alguem e logo
O casal firmou a paz...
Agua fria apaga o fogo
Se o fogo não é de mais!

CONTÍNUO – As brigas de mulher e marido quasi sempre acabam por uma paz honrosa. Eu que o diga, meu coronel. Até já perdi a conta das vezes que temos tido o lar em pé de guerra. E note-se que a minha mulher é um anjo!
CORONEL – É o que eu ia proguntá a Vancê: como é que se pode brigá com muié boa?
CONTÍNUO – Muito facilmente. O ciume transforma em feras os anjos que não habitam ás plagas celestiaes. Minha mulher é de carne e osso como nós e lá de quando em quando desconfia da minha fidelidade conjugal. (ao ouvido) Aqui para nós, meu coronel: ella tem razão, porque, como o amigo deve saber, ás vezes precisamos recrear a vista com paisagens novas... Como ia dizendo,: ella desconfia, atira-me umas indirectas, que eu finjo não comprehender, e, por fim, aborda o assumpto. Dito daqui, dito dali e o tempo se fecha... Passam-se algumas horas de sombra... Depois trocamos um olhar de relampago, esboçamos um sorriso, que a mão procura occultar, por fim...
CORONEL – Eu sei, nho moço, o que vancê qué dizê. A gente que é casado não pode ficá de mar muito tempo co a muié... Eu inté lhe digo que as veis me arrepio co a Geltrude... Mas quar o quê! Quando chega ali uma horinha já tou doido pra fazê as pazia!
CONTÍNUO – Nós não podemos deixar de cumprir a lei que o costume faz, embora depois as mulheres nos atirem á cara o labéo de sem-vergonhas!
Vejamos, meu coronel, outra nota policial:

Disputam duas mulheres
As caricias de um alferes...
Esquenta-se a discussão,
Unham-se, rolam no chão.
Uma dellas dá um grito...
Ouve-se um trillo de apito...
Pau na mão, o guarda acode...
Uma voz brada: não pode...
Outra voz... outra... afinal,
Faz-se um berreiro infernal:
Não pode... não pode... e, assim,
Vira a cousa num motim,
E, naquella confusão,
Embora as mulheres vão.

CORONEL – Tar quar, nho moço. Foi justamentes esta briga que eu vi agorinha.
CONTÍNUO – Não é possivel, meu coronel. O jornal que estamos vendo é do mez passado, logo não podia estampar noticia de um facto tão recente.
CORONEL – Intonces, nho moço, o causo é iguar. Vinham vindo duas moças de fermusura, uma de cá e outra de lá, encontrando-se na frente de um casarão que toca sineta nas porta. Bateram bocca pro causa de um officiar de policia que as duas queria. Pro fim ellas se agarraram-se e se embolaram nas carçada com toda aquella vestidada de sedaria. As rapaziada grelava pros pernaço que ellas amostrava. Entrementes, arguem soprou nos apito de chamá sordado. Veio correndo um mocinho todo inlegante, de bonet, roupa preta com cadarço e botão de ouro. Achegou-se das moça que aluitavam, levantou o pau e ia mettê nellas sem dizê palavra. Intonces, um moço sem bigode, de casaco com cintura, chapéo de paia na cabeça, deu um bruto berro: Não pode... Oie, nho moço, foi umas disparada de gente pra roda das muié. E toda aquella homada gritava não pode, de maneiras que o mantenedô das ordes baixou o pau e deixou que as brigadeiras fosse embora.
CONTÍNUO – O caso é igual, coronel. Essas scenas repetem-se quasi diariamente. O amor desenvolveu-se de tal forma nestes ultimos tempos que é comum a disputa da posse de um individuo por duas ou mais borboletas.
CORONEL – Que istora é essa! Nois falemo em muié e vancê mette barboleta nas conversa?
CONTÍNUO – Ora, sr. Anacleto... Pois não sabe que se dá o nome de borboleta ou mariposa a essas meninas que brigam por causa de namorados?
Alcançamos a secção dos que chegam a esta capital e dos que demandam outras terras. Felismente hoje apenas se registra a partida de um cavalheiro. Digo felismente porque ha occasiões em que o jornal enche columnas e mais columnas com os nomes dos que nos visitam e dos que de nós se despedem. E ainda se fossem noticias simples não seria nada. O peior é que em torno de cada nome se collocam gyrandolas de adjectivos laudatorios. Dá-se de “alto” a pygmeus, chama-se “illustre” a qualquer individuo analphabeto, acceitando-se mesmo as noticias feitas pelos interessados. Quero ver se o coronel tem a prova das minhas asserções. Vamos ouvir a nota sobre a partida de um sr. inteiramente desconhecido para nós.

Por ter de regressar
Á villa Tindiquera,
Adeus nos veio dar
Jacintho Rastaquera.

Talento extraordinario,
Rival do grande Hugô,
Esse alto funccionario
Daqui muito gostou.

É seu desejo agora
Viver na capital,
Porque lá onde mora
O clima lhe faz mal.

Assim, em breve dia,
Que, certo, já sorri,
Teremos a alegria
De vel-o por aqui.

Mudando a residencia,
Tal qual faz um cometa,
Deixará Sua Excellencia
O cargo de estafeta.

E aqui ha de viver
Em invejavel paz,
Ao lado da mulher,
Com as rendas... que ella faz!

CORONEL – Realmentes. Vancê é disgrenhado pra dizê as verdade. Os moço redatô faz cada enlogio que inté eu tava pensando que nho Jacintho Rastaquara havera de sê o presidente da Republica!
CONTÍNUO – É demais, meu amigo. Em materia de engrossamente, não ha quem supplante o pessoal desta casa. E então quando rende dinheiro é tal o descaramento dos independentes que faz corar qualquer pessoa que tenha vergonha! Chamar-se alto funccionario a um conductor de malas postaes! É extraordinario! E assim se classifica o servente lavador de escarradeiras, o abridor de caixões, o agente secreta, etc.
CORONEL – Oie, nho moço, bamo vê outra cousa, proque eu inté já tou ficando enjoado só de escuitá o que V. vae arreferindo.
CONTÍNUO – É melhor. Um annuncio de casas para alugar. Quer vel-o?
CORONEL – Apois eu já lhe disse que quero vê todo o orgão do moço.

Á rua do Theatro,
Numero vinte e quatro,
Aluga-se uma casa de madeira.
Tem sala, quarto, varanda
E cosinha,
Mas não tem quintal,
Fica fronteira
Á quitanda
Do João Sardinha.
Aluguel mensal:
Cem mil reis, e fiança,
Exigindo-se que, alem do fiador,
O alugador
Não tenha creança.
Trata-se com José Mendonça
Na Cova da Onça.

CONTÍNUO – Vio, meu amigo, como estão os proprietarios? É assim. Hoje em dia quem não quizer se sujeitar ás suas exigencias tem de morar na rua, abrigando-se das intemperies no misericordioso Albergue Nocturno!
E não ha esperança de se por um freio á ganancia dos senhorios. Eu já me lembrei de uma greve de inquilinos, mas era preciso que todos, ou quais todos, adherissem á minha idéa. Iriamos para os campos e florestas, onde armariamos barracas, conservando-nos lá até que o preço das casas baixasse. Viveriamos assim como ciganos, sob o compromisso solemne do respeito mutuo.
Que lhe parece o meu alvitre?
CORONEL – Como é que V. progunta?
CONTÍNUO – Pergunto se não acha boa a minha idéa.
CORONEL – Acho manifica. Mas V. oie, nho moço. Quem sabe se os alugadô pedissem porvidenças aos manda-chuva os preços das moradas ficava mais barato?
CONTÍNUO – Não acredite, coronel. O governo tem interesse em que os donos de casas aufiram maiores lucros, porque dessaarte não lhes falta dinheiro para ser applicado na compra de apolices.
CORONEL – Neste causo, V. veja se o pessoar arresorve fazê a greve.
CONTÍNUO – Vou tentar, coronel.
CORONEL – Isso, nho moço, proque causo V. não arranje nada ao menos fais baruio.
CONTÍNUO – (á parte) Tentar? Outros que aproveitem a minha idéa. Eu é que não estou para passar por louco, indo acabar meus dias, como os que de facto o são, num cubiculo do Hospicio.
CORONEL – Aindas farta muito pra acabá os jorná, nho moço? Vancê oie que eu tou roxo pra vê a taliana...
CONTÍNUO – Estamos quasi no fim, coronel. Chegamos á secção alheia. Eil-a:

Eu sou a Secção Alheia.
Recebo tudo... Uma vez
Que renda cobre a mancheia
Eu não dispenso freguez.

Em mim se põe o convite
Para as festas do bom tom;
Por mim se dá o palpite
Para o bicho do Drumond.

Por mim se diz desaforo
Sem temer a consequencia;
Por mim se annuncia o chôro
No parque da Providencia.

Por meu intermedio, ás vezes,
Marcam-se até rende-vous,
Com mulheres de burguezes
Que fingem Gecas-Tatús.

Do jornal talvez eu seja
A melhor secção. Quem quer
Faz por mim o que deseja
Porque eu vivo de aluguer.

CONTÍNUO – Vio, coronel? Recebe tudo, desde que cae dinheiro! Serve de intermediaria... É uma especie assim de alcoviteira. Sirva-se della, meu amigo, quando quizer fazer o seu madrigal a qualquer moçoila bonita.
Não tarda apparecer por ahi um maganão fazendo o seu pé de alferes á sombra do anonymato... Dito e feito, meu caro sr. Anacleto.

No jardim de sua existencia,
Colhe hoje mais uma rosa,
A galante Dona Hortencia,
Esposa do doutor Prosa.

Por essa razão, contente,
Rende graças ao Senhor,
Quem se assigna humildemente
Um sincero apreciador.

CONTÍNUO – Eis ahi, coronel, a prova do serviço que presta a Secção Alheia. Um conquistador ousado, como todos o são, faz os seus galanteios a uma senhora casada, talvez honesta. Entretanto, a alvejada pelas settas desse Cupido fazedor de versos, sendo fraca e vindo a conhecer o autor do madrigal, pode muito bem macular o manto da virtude.
CORONEL – Lá isso é verdade, nho moço. Mar comparando, essas cantata do conquistadô parece inté cuma casca de banana. Si a muié pisa em riba della é capais de escorregá e cai de todo cumprimento... Si argum fizé verso ansim pra Geltrude eu inté lhe juro que sou muito home de matá o trovadô. A gente, que é respeitadô, não deve buli co as muié dos semelhantes, como arrecomenda os mandamento, sarvo si se fô porvocado. Nos rincão, vae pra seis semana, o Antonho Carrapicho pregou a faca na barriga dum pintô pro querê passá de brinquedo a brocha na véia delle. Com muié dos outro ninguem deve fazê bobage nem que seje pro brincadeira. Vancê não acha, nho moço?
CONTÍNUO – Certamente, porque aquillo que não queremos para nós não devemos desejar aos outros.
Olhe, coronel, ahi vem um annuncio de baile.

Convido os senhores socios
Para o sarau amarello,
No Club Horas de Ocios...
O secretario, Fratello.

CORONEL – Que bão, nho moço, se eu fosse encovidado pra esse balo! Fais já argum tempinho que eu não arrasto os pé no assoaio! A urtima veis que eu dansei no rincão inté a muié ficou que nem tateto a ringi os dente. Nois se peguemo de pá constante, eu mais a Chica Guabiroba, e foi aquella desgracia! Só duas veis nois se larguemo na sala pra dá tempo da Chica i fazê um servicio... A minha véia adesconfiou de nois se agarrá tanto ansim e houve uma horinha que ella quiz sahi do balo. O cumpadre Chicuta, que tava com nois, disse entonces: não admetto que a cumadre vá simbora. A minha véia quiz intimá, mais porem o cumpadre agarrou ella pelo braço e foram os dois distrahi nos quintá. Quanvortaram, a Geltrude me oiou e se riu-se, tarvez pensando naquella bobicia de tê ciume da Chica!
CONTÍNUO – Então quer ir ao baile? Está dito. Comprometto-me a lhe arranjar um convite. O coronel vae admirar-se... A dansa moderna é muito differente da de outros tempos. É uma especie de chegadinho... Não se guarda mais aquella distancia respeitosa de annos atraz. Agora a união dos pares é, pode-se dizer, quasi completa. Demais, as damas não usam espartilho, cujas barbatanas chegavam a callejar as mãos masculinas. É um goso, meu amigo! Desde o modo de sentar, nota-se differença. Antigamente as mulheres vestiam saias compridas, que mal lhes deixavam á mostra a ponta dos sapatinhos... Hoje, quer as solteiras, quer as casadas, trazem os vestidos quasi acima dos joelhos, usam decotes escandalosos e, quando se sentam, crusam as pernas, expondo-as aos olhos cupidos da mocidade ardente!
CORONEL – Eu já tinha ouvido falá nessas barburidade, mais porem se V. não me dissesse, somentes vendo eu podia acreditá.
CONTÍNUO – E o mais interessante é que as que não procedem assim são censuradas pelas modernas, que as chamam de trouxas, mal enjambradas, bruxas, etc.

Por motivo de mudança,
Se vende por qualquer preço,
Uma cama para creança
E dois bonecos de gesso.

CONTÍNUO – Isto chama-se desaperto, coronel. Alguem se vê mal de finanças e então annuncia que tendo de se retirar do Estado vende moveis. É a crise do arame! É a falta daquillo com que se compram os melões! Eu falo de cadeira, meu amigo, porque já usei desse estratagema. Não há muitos mezes, andei apurado por falta de cobres. Appellei para diversos amigos, que tiraram o corpo fóra com admiravel habilidade. Recorri a conhecidos zangões, promettendo-lhes juros fabulosos, nada conseguindo. Os mais liberaes, ou melhor os menos usurarios, mostraram vontade de me servir, exigindo apenas que eu acceitasse letras, a praso curto, endossadas por duas ou tres firmas acreditadas como a do banqueiro Rotchild. Afinal, quando eu me convenci de que não arranjava nada, entrei em accordo com a mulher e annunciei que vendia alguns objectos por ter de mudar de residencia. Appareceram-me uns judeus em casa, aos quaes entreguei, por uma ninharia, diversos trastes, inclusive a cama do casamento, comprada a prestações e que ainda não era totalmente nossa.
CORONEL – É muito triste as necessidade da gente! Eu carculo, nho moço, como não havera de ficá chorosa a sua muié quando arretiraram os leito de dromi! Proque se ai dô doida pras véia da gente ha de sê a de se desfazê de uma coisa que ellas tão acostumada a vê desde os dia do casorio!
CONTÍNUO – É certo, meu amigo. Minha esposa sentio, e muito, a venda da cama. Entretanto, agora, já estamos acostumados a dormir só no colchão sobre o soalho. Ella e eu, por não haver remedio, nos conformamos com a sorte.
CORONEL – Coitada da sua muié! Tãobem proque V. não vendeu outra cousa? A cama V. devia poupá, porque ansim não causava tanto sentimento a sua véia.
CONTÍNUO – Poupar? Como? Se só me faltava dispor della? A sahida da cama foi o canto do cysne do poeta! (á parte) Ou vendel-a, ou imitar os irlandezes na greve da fome... forçada!

Um senhor já de idade madura,
Cuja renda lhe vive a sorrir,
Uma moça distincta procura
Que de esposa lhe queira servir.

Não deseja mulher já passada...
Quer moçoila, viuva ou solteira,
Que lhe seja fiel camarada,
Que lhe seja leal companheira.

Quem quizer acceitar a proposta,
Por julgar-se capaz da missão,
Pode vir entender com o Costa,
Na taverna do Juca Leitão.

CONTÍNUO – Que tal a pretenção do velho, sr. Anacleto? Dizem que a formiga quando quer se perder cria azas. E é certo, meu coronel. Pois esse senhor não vê logo que a sua união com uma mocinha só lhe pode dar na cabeça? Tudo deve estar em relação... Imagine o amigo uma luta entre um homem de sessenta annos e um rapagão de vinte... Salta aos olhos a desvantagem do primeiro, que será fatalmente vencido si não vier em seu auxilio outro rapagão... No primeiro momento, o bufo do velho pode assustar o adversario, mas depois é preciso a intervenção de um terceiro para evitar o seu sacrificio. Em certos casos deve haver o equilibrio... a igualdade de forças... Bem... Bem... não quero avançar a tanto... Vamos dizer a quasi igualdade é muito necessaria...
CORONEL – Vancê oie, nho moço, que ai muitos véios duro... Eu, por exempio, não tenho arreceio de entrá em peleja com gente nova. E se V. duvida progunte pra Geltrude as minha brabeza... Ella sabe que eu não me entrego ansim com duas rezão. Quem vié pros meu lado persuadido das minha molleza, roda nos carcanhar ou se espeta nos ferro do véio Anacreto. Bamo... Bamo... nho moço, acabá de vê os jorná, que eu tou cançado de pensá na taliana.
CONTÍNUO – Neste caso, para o coronel não perder mais tempo, vamos desistir de ver o resto da secção alheia, que pouca importancia tem. Como se diz em linguagem vulgar, fica o rabo, que lhe mostrarei depois.
CORONEL – É mió. Amanhã de dia eu vorto inté aqui e intonces vancê me amostra o rabo.
CONTÍNUO – Busquemos os nossos chapéos e ganhemos o olho da rua, coronel.
CORONEL – (Reparando no “Almofadinha”, que entra) Oiae! Quem é esse individuo que ahi vem, nho moço? Parece inté que trais collete de muié!
CONTÍNUO – Não faça caso, coronel. Esse é um typo decifrador de charadas... sem conceito. A especialidade delle é a charada invertida... Vem procurar o redactor. Quer ver? Deixemos que elle fale...
ALMOFADINHA – O redactor está?
CONTÍNUO – Não senhor.
ALMOFADINHA – Que pena! Trazia aqui uma charada invertida. Quer vel-a?
CONTÍNUO – Fica para depois. Nós temos pressa. Precisamos sahir já.
ALMOFADINHA – Tenha paciencia... Escute... Duas syllabas... O homem pode ser mulher?... Que tal?... Decifrou?... É tão facil... O homem — lima... Invertido o todo, temos amil, nome que, se eu me casar algum dia, darei á primeira filha que minha esposa tiver... Quer escutar outra?...
CONTÍNUO – Amanhã... amanhã... (ao coronel) Ás suas ordens... Vamos?
ALMOFADINHA – Então passe bem... Lembranças ao redactor.
CORONEL – Ota home parecido com muié! Inté no rebolado!
CONTÍNUO – Não percamos tempo, coronel. (vão sahir e se esbarram com uma mulher, que entra)
CORONEL – (espantado) É a taliana! Como foi que ella adivinhou que eu tava aqui?!
ITALIANA – (ao continuo) Eu quero que o sr. ponha um annuncio no jornal de amanhã. Desappareceu o meu Tótó. Roubaram-no, de certo. É um cachorrinho branco, liso, gordo e de olho preto... Diga que eu gratificarei generosamente a quem leval-o á minha casa. Rua...
CONTÍNUO – Sim... Sim... Já sei... (ao coronel) Quer que o apresente á italiana? Digo-lhe que o senhor é uma especie de detective, o policial que descobre tudo... Olhe, minha senhora, tenho a honra de fazel-a conhecer o coronel Anacleto da Rosa. É um senhor de uma argucia extraordinaria, bastando dizer-lhe, para proval-o, que rivaliza com o celebre Nick Carter.
ITALIANA – Grande prazer em conhecel-o. Quem sabe se o senhor pode prestar o immenso serviço de descobrir o meu Tótó?
CORONEL – Como não, nha moça. Eu inté posso lhe garanti que vancê vae ficá sastifeita com o meu servicio. (ao continuo) Vancê é disgrenhado pra dá geito nas coisa! (á italiana) Nem paga a pena vancê pô annunço no orgui do moço. É mió se fazê a percura do tótó sem baruio... Vancê me acompanhe que eu inté juro que com pouca demora descubro o seu cachorro!
CONTÍNUO –E não é que a gente se acostuma com tudo! Faz minutos que o Anacleto sahio daqui e, no emtanto, eu já estou com saudades delle! (Depois de uma pausa) Ah! agora me lembrei que o cachorro da italiana pode estar atacado de hydrophobia! Vou já alcançar o coronel para diser-lhe que tenha cuidado senão a dentada pode ser fatal!

(Fim do 2º e ultimo acto)

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