Minha Terra

A Morretes, o coração
do Paraná, esta singela
homenagem de um filho
humilde.

Minha Terra feliz! Ó abençoado
solo fecundo onde nasci, agora,
ao rever-te, revejo o meu passado
e de prazer meu coração se enflora!

Após andar por esse mundo a esmo,
torno ao teu seio carinhoso e amigo,
a cantar tendo dentro de mim mesmo
o rouxinol do meu prazer antigo.

Olhos voltados para o teu encanto,
longe vivi, vivendo da saudade,
como quem traz o coração em pranto
e a alma envolta em um burel de frade.

Como te quero bem, ó minha Terra!
Como me sinto alegre no teu seio!
Olho-te o céo, olho-te o rio e a serra
onde se esbate o sol doirado em cheio!

Feliz quem póde remoçar, revendo
a Terra amada onde nasceu e os dias
da mocidade, que passou correndo
num turbilhão de doidas alegrias!

Feliz quem póde como agora posso
folhear o livro do passado e ver
que resurge, num rutilo alvoroço,
aquelle tempo todo de prazer!

Recordar é viver, que recordando
a quadra azul da mocidade em flor,
sente-se ao peito o coração cantando
versos doirados sob o sol do amor.

Nunca pensei a mim me fosse dado
este consolo de rever-te, a rir,
o céo azul de estrellas pintalgado
como um manto com perolas de Ophir.

Nunca pensei tivesse a indefinida
alegria de ver-te ainda uma vez,
como outrora te vi, Terra querida,
cheia de encantos, num doce ebriez.

Serra do Marumby! Grandiosa serra,
tu me lembras, erecta assim, ahi,
um eterno atalaia desta Terra,
desta Terra feliz onde nasci!

O’ rio Nhundiaquara! O’ rio, agora
tão suave, a correr, num murmurio,
quanta cousa me evocas tu de outrora,
quando me era a existencia como um rio!

Espelho em que me vi na mocidade
e me retrata novamente, tua agoa
ás vezes chora a nenia da saudade,
nunca porem, o cantochão da magoa.

Sob este céo da minha Terra amada,
viver quizera, na mais doce paz,
á musica do goso a alma embalada,
como no tempo que ficou atraz.

Viver aqui como seria suave,
na placidez desta paysagem, tal
como se a vida fosse um canto de ave,
asas ruflando, na hora matinal.

Outra felicidade eu não desejo,
se outra felicidade póde haver,
alem dessa tão doce como o beijo
de almas noivando na asa do prazer.

Alheio ao mundo, vendo-o resumido
nesta prodiga Terra, para mim
cheia de seducção, como um florido,
um perfumoso, um magico jardim...

Embevecido pelo teu encanto,
pelo teu esplendor, que outra não ha
que te supplante e me seduza tanto
como tu, coração do Paraná!

Gosar dessas tuas rubras alvoradas
com gorgeios de passaros pelo ar,
nessa doida alegria de balladas,
nessa alegria doida de cantar!

Ver despertar o sol, prodigamente
esparrimando luz por sobre o valle,
onde floresce o lyrio alvinitente
que nos embriaga a nós com seu trescale!

Olhar o campo verde illuminado
pelo clarão de Apollo e lá, ao fundo,
ver a pastora que apascenta o gado,
cantando alheia aos vendavaes do mundo!

Ouvir os guinchos dos engenhos moendo,
nessa preoccupação do dia a dia,
desde a manhã até que o sol, descendo,
desapparece atraz da serrania...

E o lavrador cantarolando alacre,
na hora crepuscular quando, ao poente,
o céo se tinge de vermelho lacre
e os sabiás modulam tristemente...

Participar dessa alegria, dessa
satisfação de quem o lar procura,
cheio de fé na Terra que a promessa
sempre lhe faz de um anno de fartura...

Vel-o em casa a sorrir á companheira
e á prole forte, que sorri, tambem,
aos affagos do pae, cuja canseira
nos frutos de amanhã um premio tem.

E deixar-me enlevar por essa scena
de uma simplicidade tão chocante
que, muita vez, a lagrima, serena,
ha de orvalhar-me o rosto em tal instante.

Por que como a cruel desdita alheia
faz-nos chorar, tambem o alheio goso
os olhos quasi sempre nos mareia
pela satisfação do venturoso.

O’ gente da lavoira, ó gente rude
e venturosa que amanhais o chão,
para vós o trabalho é uma virtude,
só vos enche de goso o coração!

Gente feliz que, sol a sol, cantando,
viveis a cultivar a gleba rica,
que hontem vos deu, hoje vos dá e quando
for amanhã de novo frutifica...

Gente simples cuja alma é como o lyrio
que á luz do luar esplendido flori,
quanta vez vos ouvi, á luz de um sirio,
as historias pasmosas do Sacy!...

Ingenuos seres! Entre vós a vida
é toda uma canção de rythmo de oiro,
por que ter, como vós, a alma despida
de ambições é possuir raro thesoiro.

Por que viver como se vive na ansia
de ascender, de subir, quando a Ventura
nem sempre se remonta á culminancia
onde tambem ha laivos de amargura?!

Felicidade é ter-se a consciencia
em paz; é não se ter remorso algum,
por que só é feliz nesta existencia
quem se reparte para o bem commum.

Quem não tem ambições, quem se conforma
em trabalhar para viver e o bem
pratica, tendo o bem por sua norma,
esse é o ser mais feliz que o mundo tem.

Assim sois vós, honestos lavradores
da minha Terra, em cujo lar se abriga
a bondade — esse bálsamo das dores
dos desgraçados que o azar fustiga.

No coração, como em um cofre raro,
guardais o bem, por que sois bons, talvez
com muito mais carinho do que o avaro
guardara, se pudesse, o oiro dos reis.

Eu vos conheço bem na intimidade,
por que comvosco convivi outrora,
quando não conhecia ainda a saudade,
— violino d’alma que soluça e chora.

Lembro-me bem; outrora, quando á porta
do vosso lar eu me achegava, via
á vossa bocca o riso que conforta
por traduzir legitima alegria.

Almas affeitas á bondade, quanta
vez eu vos vi assim, a rir, e então
junto de vós, sob essa paz tão santa,
senti me palpitar o coração.

Foi-me o vosso carinho como um elo
que nem a ausencia conseguio quebrar,
por isso que augmentou o meu anhélo
de vos vir ver o carinhoso lar.

Deu-me o Fado o prazer inebriante
de retornar á Terra tão querida,
onde nasci e onde passei o instante
da mocidade — o sonho azul da vida.

Eis-me de novo aqui, eis-me risonho
entre vós, sob o azul deste infinito
céo que, á noite, se estrélla como um sonho
de amor, que alegra o coração afflicto.

Como te sinto perto, ó mocidade
que passaste, a correr como uma lebre,
e, por sentir-te assim, áquella idade
eu volvo agora, palpitando, em febre...

Ó doirada illusão! Bemdito seja
quem logra se illudir como me illudo
e, esquecido da magoa que lateja,
pisa caminhos suaves de velludo!

Quanta felicidade eu rememoro,
quanto sonho de amor á mente vem,
ao ver-te, ó minha Terra que eu adoro,
como uma flor que só perfume tem!

Ó dias de oiro agora relembrados,
cheios de sol, cheios de luz e cheios
do perfume dos lyrios dos vallados
e da doce harmonia dos gorgeios...

Ó primavera! A Terra em flor! Essencia
é todo o ar que se respira! Deus,
quem déra que voltasse da existencia
a primavera com os encantos seus!

Quem déra retornasse aquelle lindo
tempo de amor, que já passou... Quem déra
ter-se de novo o coração florindo
como a Terra ao voltar da primavera!

Que bom seria abrir-se o peito ao bando
das andorinhas da illusão e ve-las
de novo todas, a chilrear, voando,
num esplendor mirifico de estrellas!

Sonho de amor... Primeiro sonho... Nunca
se ha de esquecer o sonho bom que o chão
em que se pisa de camelias junca
e como um canto embala o coração!

Ó rio Nhundiaquara! Ó companheiro
da minha mocidade ha muito morta,
ao ver-te lembro o meu amor primeiro,
e essa lembrança o peito me conforta!

Testemunha leal de idyllios idos,
nunca tiveste voz para dize-los,
por que os sonhos de amor quando sabidos
muitas vezes se fazem pesadelos.

Jasmineiros em flor, como a cabeça
da velhice, ás tuas margens, a alvejar,
e em cujos ramos, de manhã, travessa,
a passarada, ao sol, vinha cantar...

E sobre essas tuas agoas cor de neve,
fazendo curvas, como serpes, ia
o barqueiro feliz, descendo, leve,
de alma a cantar como uma cotovia...

Sangue da minha Terra! Ó rio-arteria,
se extravasas, o solo que tu molhas
abre-se em flores de bellesa etherea
e na pompa dos frutos e das folhas.

Alma da minha Terra! Ó rio amigo,
dá-me a felicidade desmedida
de reavivar, ao ver-me a sós comtigo,
o romance melhor da minha vida.

Lembras-te? Aqui... Eu te mirava a lympha
a correr, a correr num murmurinho,
quando me appareceu, como uma nympha
alguem que encheu de sol o meu caminho!

Depois... (por que dizer-te aquella historia
que tão bem sabes como eu sei?) — Depois,
dessa felicidade transitoria,
o segredo ficou entre nós dois!
***
Recordar... Recordar... Como suavisa
a dor do coração a alma lembrança
de um sonho que se foi, á leve brisa,
qual um beijo nas azas da esperança!

Recordar é viver-se duas vezes,
nos dias do presente e do passado,
por isso que, jungido aos meus reveses,
libo de novo o nectar já libado.

Terra do coração! Uma por uma,
aos meus saudosos olhos ora vão
surgindo, como Venus dentre a espuma,
aquellas scenas de prazer de então.

Vejo-te a igreja branca na eminencia
do verde outeiro, sobre o rio, á luz
do sol canicular cuja opulencia
nesse perpetuo brilho se traduz...

Ouço-lhe o sino bimbalhar... E vejo,
sisudo, o padre vir, a passos lentos,
sem apparatos regios de cortejo,
como que a mastigar os mandamentos.

A pouco e pouco vae se enchendo o adro
de fieis, velhos e moços que, risonhos,
formam, sem o querer, o bello quadro
que atravéz a saudade eu via em sonhos.

De novo agora o carrilhão bimbalha.
Enche-se o templo... E’ a missa. Di-la o cura,
emquanto que do côro a voz se espalha
pela casa de Deus, toda doçura.

Findou a cerimonia. Estouram no ar
as bombas dos gyrandolas, ao passo
que o som do carrilhão a bimbalhar
vae se extinguir no concavo do espaço.

Que ineffavel prazer experimenta
aquella gente, regressando á casa,
limpa de culpa e de peccado isenta,
sob o sol causticante como brasa!
***
Hora crepuscular. Helios no occaso.
Em sangue o céo. Lyrios abrindo... A Terra,
como se toda a Terra fosse um vaso,
em flores e perfumes se descerra.

Ave Maria! o bronze vibra á torre
da igreja e a voz do bronze, dolorida,
de valle em valle, tristemente corre,
como um grito de dor de alma ferida.

Despedem-se do sol os passarinhos,
violinando a canção do fim do dia,
e, por entre a mudez triste dos ninhos,
a lua surge, como a neve, fria.

Como é bello o luar branco de prata
da minha Terra, ao qual, ás horas quietas,
para escutar do amor a serenata,
vêm aos balcões as noivas dos poetas!

Coração, coração, como se fôras
um cofre, guardas a lembrança doce
das noites de luar encantadoras
em que cantei como se um melro fosse!

Meu amor! Meu amor! Tenho-te perto,
vejo-te junto a mim, tal qual outrora,
naquella irradiação de iris aberto
entre gorgeios, ao romper da aurora!

Vejo-te assim, á luz do luar, sentindo
o coração illuminado como
se reflectisse, desta Terra, o lindo
céo azul que eu contemplo num assomo...

Tudo de ti me falla nesta minha
Terra feliz: o sol, a lua, as flores,
os passaros, o rio, a serra e a vinha,
sob a qual te contei os meus amores!

Doce illusão! Sentir-me transportado
áquella quadra de prazer antiga,
que me foi como um beijo perfumado,
ou como o affago de uma mão amiga!

Sonho de oiro! Sentir que á primavera
da vida volto, retornando ao teu
seio, como quem vae á ilha Cythera,
ao som da lyra magica de Orpheu!

Sentir o coração de novo immerso
no lago do prazer, como sentia
noutro tempo em que a vida me era um verso
de uma dulcificante melodia...

Remoçar ao te ver, Terra adorada,
com o mesmo velho encanto sempre novo,
qual mirifica flor olorisada
pela grandesa d’alma do teu povo!

Recomeçar a vida já vivida
junto de ti, dentro de um sonho irial,
nessa illusão que constitue a vida
de quem nunca provou frutos do mal...

Viver por ti em ti, ó minha Terra,
ver-te feliz e ser feliz aqui,
sob o azul deste céo, que se descerra
como um manto imperial por sobre ti!...

Que mais posso aspirar? Que mais o Fado
póde me dar, senão o doce abrigo
do teu seio de mão, onde acordado
vivi de um sonho bom que ainda bemdigo?

Terra querida! Minha Terra! Terra
de sol, de luar, de seducção e brilho,
a ti te dou meu coração que encerra
ó grande orgulho real de ser teu filho!