Insomnia

I
É noite. Faz luar. O silêncio é profundo.
Não farfalham, siquer, as copas dos arbustos,
Erectos, a lembrar as almas do Outro Mundo,
Que nos enchem de pasmo e nos causam mil sustos.

A terra inteira dorme emquanto a lua-cheia,
Como exotica flor que nas estepes viça,
Pelo velludo azul do infindo céo passeia,
Por tudo derramando a sua luz mortiça.

Como rosas de luz, pouco a pouco, as estrellas
Vão salpicando o céo, que apresenta, por fim,
Aos meus olhos, que alongo, ansioso por vel-as,
A belleza immortal de magico jardim.

De cuidados vergeis o perfume que embriaga,
Misto de rosa-chá, amor-perfeito e liz,
Eu aspiro, a sorrir, como quem nalma affaga
A esperança de ser ainda um dia feliz.

II
E’ profundo o silencio. As ruas são desertas.
Só eu vélo, talvez, porque a insomnia assim quer!
Feliz quem pode ter as portas dalma abertas
Como templo de amor consagrado á mulher.

Amar... Viver do amor, que a taça dos prazeres
Leva aos labios febris da mocidade em flor...
Ah! que ditosos são os carinhosos seres
Que se beijam ao luar, em colloquios de amor!

Julietas e Romeus, que vos amais com ansia,
Em cujos corações só se abriga um desejo,
A vida para vós se resume na estancia
Da paixão que cantais, á musica do beijo.

Quem me déra poder, por encanto, ainda um dia,
Sentir o coração reviver para o goso,
E inundado me ver dessa immensa alegria
Que transforma o infeliz num ente venturoso!

Como as ruas, deserta a alma eu tenho agora...
Os sonhos, um por um, deixaram-na tão só,
Que quem a perscrutar notará que ella chora
Como chora o salgueiro uma nenia de dó!

III
Não tarda amanhecer. As cômas do arvoredo
Começam de oscillar á brisa, que me traz
Ao ouvido o rumor de um beijo que, em segredo,
Foi dado, á luz do luar, em meio de rosaes.

Um gallo canta alem... Outro responde... A lua
E as estrellas se vão e, por entre gorgeios,
Esponta a aurora, a rir, nessa alegria sua,
Que é bem doce elixir a lacerados seios.

Após, beijos de luz o sol imprime em tudo.
A serra se illumina. Alegra-se a floresta,
Onde cantam, num côro, em notas de velludo,
Os passaros gazis, na matutina festa.

Da zagala feliz, que apascenta as ovelhas,
Ouve-se agora a voz, cuja doçura é como
A de um favo de mel que as doiradas abelhas
Fazem empós sugar as entranhas de um pomo.

E’ uma canção de amor que ella canta, risonha,
Pastoreando o rebanho, a se lembrar, talvez,
Que em breve lhe será o sonho com que sonha,
Nas azas do prazer, um vinho de Xerez.

Que ventura, meu Deus, quando entregar-se, quando
Aquelle camponez apertal-a nos braços
E lhe beijar a bocca, as almas palpitando
Como azas que se vão a cortar os espaços!

A pensar nesse dia almejado, de certo,
Ella vive a cantar, ella vive a sorrir,
Porque quem ama vê, inteiramente aberto,
O céo com que sonhou de rutilo porvir.

As zagalas rivaes hão de sentir inveja
Dessa ventura, quando ella, noiva, de véo
E grinalda, se for, em direcção á igreja,
Receber, a sorrir, a alma benção do céo.

Ha de ser em Setembro o seu enlace, pela
Primavera talvez, ao reflorir dos prados,
Porque nessa estação, que tem brilhos de estrella,
O coração palpita em ansias de noivados.

E, dentro desse sonho esplendido de moça,
A camponia se vae, a tocar o rebanho...
Ai! como cantam bem essas virgens da roça!
Como as suas canções têm um sabor estranho!

Não mais eu ouço agora o harmonioso accento
Do seu canto... Não mais escuto essa cantiga
Que me veio alegrar, ao menos um momento,
A alma cheia de dor e cheia de fadiga!

Como seria bom em as noites de insomnia,
Quando o peito me queima um brazeiro de fragoa,
Ouvir a doce voz dessa rude camponia
Em cujo coração não tem guarida a magoa.

Como faria bem a quem soffre na vida
Esse canto de amor! Talvez essa canção
Enchesse de prazer a minhalma ferida
E me désse a beber o nectar da illusão!

IV
A cidade acordou... E’ tudo um borborinho...
Rapido ascende o sol, cuja doirada luz
Aquece como a lã, anima como o vinho,
Não deixando morrer os enfermos e os nús.

Cruza-se aqui e ali, nessa diurna faina,
Essa gente viril, que trabalha, ditosa,
Preparando, a sorrir, a vellutinea paina
De risonho porvir com perfumes de rosa.

E’ o noivo que sonhou levantar um castello,
Aonde a lua de mel logre passar assim
Longe de olhares maus, sem os zelos de Othelo,
Como um beijo de amor que jamais tenha fim.

E’ o marido feliz que adivinha os desejos
Da consorte gentil, que a existencia lhe doira,
Fazendo da paixão, que se transfunde em beijos,
Um sol, um bello sol de luz immorredoira.

E’ o carinhoso pae que procura o conforto
A esse botão de flor que elle chama de filha
E em quem, por vezes, põe os seus olhos, absorto,
Como alguem que contempla estranha maravilha.

E’ essa felicidade, em summa, de quem ama,
Porque somente o amor a vida movimenta,
E a vida se traduz nessa grande azafama,
Nesses beijos de luz e de paixão violenta.

V
Urna — o meu coração guarda a cinza gelada
De um lindo sonho azul que esperanças me deu,
E é por isso que eu tenho esta alma acorrentada
Ao rochedo da dor de um triste Prometheu.

Espectro do que fui, dentro da noite escura
Desta insomnia cruel, que me anniquilla aos poucos,
Eu vivo de invejar essa alheia ventura
Contra a qual nunca tive as blasphemias dos loucos.

E assim se vão passando os meus dias de vida
Nesta desolação, que parece sem termo.
A alma afflicta a chorar pela magoa pungida,
Agro pranto a verter meu coração enfermo.

Amar é ser feliz; não amar é ser triste;
E’ não ter dentro dalma um sol de aureo fulgor.
Para quem como vós vos amais é que existe
Essa felicidade irmã-gêmea do amor!

A ventura sorri no canto da camponia,
No carinho do pae, no beijo dos maridos,
Emquanto a dor me faz, atravez desta insomnia,
Entoar o cantochão dos meus sonhos perdidos!

Coritiba — Setembro — 1921.